Lázaro e o pássaro
Disso eu bem sei, talvez: o dia de Lázaro mais uma vez amanhecera como ontem. Transeunte entre o quarto, cozinha, sala e garagem, ele repetira a mesma vassalagem sem obrigação. Fez café preto no coador deslavado, ligou o televisor velho e negro e sentou-se, zapeando pelos mesmos canais de todos os dias. Quando o eletrônico vitral, vital, o enjoava, Lázaro da poltrona se levantava e, deixando ali a quentura das nádegas, calçava os chinelos de pano surrado frente à porta. Seu caminhar, uma marcha torta pelos anos que passara mais sentado que ereto, o levava de dentro do casebrinho até fora.
Mas fora, quem via, espirrava água do rosto a choramingar por dó. No teto da garagem, telhas malechas exibiam frestas que, como estas, grande só vi em racho de paiol. Um restolho de palha sobre o chão pudera ser os remendos do telhado mas, que nada, que nada: fiapos do ninho que alí morava um passarinho.
Por alí, Lázaro alimentava seu cantador matutino, sem nome mesmo, um passarinho. Dentro da gaiola, ou castelo escuro, era capaz de assoviar de lá à sol mesmo em dias turvos. Mas, sobre o canto do pássaro, abafado, escondia-se o desencanto que fazia Lázaro pensar sobre seu estado de um homem sozinho e desamado. Seu olhar ingênuo, sob os fios esbranquiçados da sobrancelha, escondia passados incertos, desconexos e inversos a versos perfeitos de amor e poesia. Nem Camões e seu amor, nunca entenderiam. Eu, vizinho de portão, é quem sabia.
A esposa fora embora de casa coberta de razão. Sem deixar a Lázaro o carro da família, a pão e farinha, ela prometera não voltar. Suas manchas roxas, nas costas, nas coxas, poderiam se camuflar entre um campo de violetas: eram marcas que Lázaro deixara no corpo da esposa depois do primeiro e único ano de casado. O álcool lhe fazia macho, digno dos culhões entre as pernas, espaço aberto de para sua violência liberta. A mulher levara consigo sua filha, só sua, escondendo da inocência a mazela de ser fruto de pai desmerecido duma família.
Mais uma vez o dia se repetia como ontem, anteontem. O amanhã como as lembranças de Lázaro de hoje, assim igual estes fatos que, como eu conto, peça aos vizinhos a mesma história que eles te contem. Mas, por ser eu o mais chegado nesse caso, não é por acaso: a história de Lazáro, melhor que eu, não há contador que conte.
E que fique em segredo: continuo em 25 de fevereiro.
Pipocas! Bom, muito bom.
Gostei mesmo.
E esse eu entendi perfeitamente.
🙂
Leitura agradável, mas não imaginei que você colocaria esse texto por aqui. 😉